Dona Lengalenga


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O que vou contar aconteceu lá por volta do outono e foi visto com estes olhos que um dia a terra há de comer; se tivessem me contado, eu não acreditaria.
O caso aconteceu com Dona História que, por ser sem graça e não despertar a atenção de ninguém, tinha o apelido de Lengalenga.
Dona Lengalenga era como tantas outras histórias que andam por aí, de boca em boca, sempre igual. Um dia, suas coronárias silabáticas não aguentaram mais e ela sofreu um ataque de desatenção. Levada às pressas para o Hospital Literário, o mais afamado de da cidade, foi atendida pela doutora professora Dalva que imediatamente a encaminhou para a UTI. Depois de um minucioso exame foi constatado que era caso de cirurgia.
Os parentes foram procurados para a necessária autorização, mas não foram encontrados. Sem perder tempo, dada à gravidade do quadro clínico-literário, a capaz cirurgiã assumiu a responsabilidade e iniciou-se a intervenção cirúrgica, baseada na técnica mundialmente conhecida como Tratamento Verbal; poucos tinham a capacidade de fazer uso dela.
A professora mexeu em quase tudo, ou melhor, segundo seu estilo de operar, ela colocou uma ordem no relacionamento entre as partes que compunham Dona Lengalenga e que era responsável por aquele seu aspeto comum e desinteressante. Assim, usando sempre o tratamento verbal e o seu estilo individual, a doutora deu o último ponto na paciente, encerrando a cirurgia.
Depois do tempo necessário, finalmente chegou o momento de retirar os curativos. Presentes no quarto, somente a equipe do hospital; os parentes não quiseram presenciar e aguardavam no corredor; de vez em quando, um rosto chegava para espiar através da janelinha de vidro na porta. Olhar por olhar.
Porém, à medida que os curativos eram retirados, um a um, percebeu-se uma agitação entre os parentes do lado de fora que queriam olhar, todos ao mesmo tempo, pela pequena janelinha de vidro. O motivo de tal curiosidade era a beleza de Dona Lengalenga. Depois de retirados todos os curativos, o que surgiu não era mais a Dona História e muito menos a Lengalenga – era a beleza personificada numa obra de arte, num discurso visual modernista! Alguns, dentre os entendidos, chegaram a levantar a hipótese do surgimento de um novo estilo de época, tal fora a mudança que se operara em Dona História Sem Graça.
Hoje, graças ao seu enredo, resultado do entrelaçamento adequado de suas partes, ela aproveitou e mudou também de nome, passou a ser chamada de Obra Literária - Literária, para os íntimos.
Eu vi com estes olhos que a terra há de comer; se tivessem me contado, eu não acreditaria.



EP.Gheramer



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