POSSESSÃO
O
que posso concluir depois de tudo o que passei é que antes eu era um, depois
fui dois e agora voltei a ser um, mas de uma natureza diferente daquela que eu
fora.
Quando
estava dividido, a impressão que tinha era a de que minha alma estava sendo
disputada por espíritos de naturezas diferentes. O desenrolar desta disputa,
numa alternância de vencedores que parecia não ter fim, ora sob o jugo de um,
ora sob o jugo de outro, tomando minha alma e habitando este meu corpo, fazia
com que eu experimentasse tanto a confusão da semiescuridão quanto a
desorientação completa da escuridão total das trevas. Porém, muitas e
incontáveis as vezes em que me senti confuso e também desesperado; como o
pêndulo de um relógio que não para de oscilar, minha alma ora pertencia a um,
ora pertencia a outro; com isso, minha mente ficava dividida entre um extremo,
em que era capaz de, neste corpo, levar a cabo as mais inexprimíveis maldades e
outro, onde ficava a culpar-me das maldades que cometia no primeiro, embora não
tivesse consciência do que eu tanto me acusava; havia apenas um sentimento de
culpa abstrato que me atormentava a existência. Hoje, sinto que sou peregrino
neste corpo e nesta terra; eu escrevo o que vejo através destes olhos. Nada,
além disto. Eu apenas olho, vejo e escrevo.
A experiência que narrarei aconteceu muito antes que eu pudesse formar, digamos, uma pálida opinião a respeito e em seguida expressá-la nas palavras do último parágrafo que o leitor acabou de ler. Porém, a impressão mais forte, a sensação indizível e que jamais se apagará de minha memória, esta, não conseguirei escrevê-la; a que experimentei quando, depois que tudo acabou, eu abri os olhos e pude, então, chorar.
Nesta
história eu serei o autor, o narrador e o protagonista; os demais personagens e
os acontecimentos poderão ser reais ou fictícios. Excetuando a minha pessoa,
tudo o mais poderá levar a divagações devido à ambiguidade, ou não, e à maneira
como será percebido pelo leitor inconsciente, aquele que lê ao mesmo tempo em
que o leitor consciente, mas que, diferentemente deste, penetra na supra
realidade.
Comecemos.
No
dia onze de junho de 200..., exatamente às onze horas, entrei na livraria, no
centro da cidade. Meu objetivo era específico e a intenção há muito
determinada: comprar o livro de Waldemar Ribeiro, intitulado “Cura em
Cafarnaum” e outro chamado “Concordância bíblica”. Depois de folheá-los, mais
por hábito do que por curiosidade, entreguei-os à vendedora que preencheu a
nota de venda; depois, dirigi-me à caixa para efetuar o pagamento e foi aí que
aconteceu uma coisa que veio tirar da rotina todo o resto daquele dia e de
muitos outros depois dele: a moça da caixa, depois de ler o preço a ser pago,
falou para outra a seu lado, encarregada da seção de embrulhos, que aquele era
o número da besta. Despertado por
aquelas palavras e mais ainda pelo tom com o qual elas foram pronunciadas,
perguntei-lhe o que estava acontecendo e ela, trêmula, respondeu-me que o valor
a ser pago correspondia ao número da Besta, que estava na Bíblia. Achei curiosa
a coincidência e, se não fosse a agitação que percebi nas duas, aquilo teria
sido esquecido ali mesmo. Paguei e ao estender o braço para pegar o embrulho
notei que a balconista segurava-o com as pontas dos dedos, parecendo querer
evitar que minha mão tocasse na sua. Foi num misto de encabulado e confuso que
apanhei os livros e saí da livraria, pretendendo nunca mais voltar ali, mas não
sem antes verificar que havia guardado e bem guardado, a nota de venda; queria
olhá-la com calma enquanto estivesse na barca que fazia a travessia da baia,
levando-me de volta para casa. E assim fiz.
Acomodei-me
numa das cadeiras do andar de cima da barca, junto à janela e, depois de
colocar a pasta e o embrulho sobre a cadeira vazia ao meu lado, retirei a nota
de venda do bolso e passei a examiná-la: o papel era branco e as letras
impressas na cor preta; escritos a caneta estavam a data, os nomes dos livros,
os valores e, ao pé da nota, no canto direito, o total a pagar com o desconto:
148,666 reais. Nada mais; uma nota como outra qualquer, não fosse o acontecido
na loja por causa do número. Dobrei papel e recoloquei-o no bolso. Cruzei os
braços, olhando através da janela distraidamente e pensei na bobagem que era
aquilo tudo. Porém, curiosamente, embora eu tenha ficado a pensar também em
outras coisas durante o tempo da travessia da baia, aquela bobagem não saia da minha cabeça, como acontece com outras coisas
que pensamos e que daqui a dois minutos são substituídas por outros
pensamentos. Era como se algo de concreto, e não de abstrato como um
pensamento, houvesse entrado em minha mente e agora ocupasse um lugar discreto
e obscuro, bem lá no fundo, com os olhos a mirar o meu interior, como que a
fazer o reconhecimento do lugar onde, daquele momento em diante, passaria a
habitar e, horror dos horrores, a agir.
Desde
este maldito dia, eu não consigo executar meu trabalho. Todas as vezes que
tentei escrever algo, o fazia durante o dia inteiro para, logo chegada à noite,
reler e atirar dentro de uma gaveta destinada a “Escritos não concluídos –
ideias”; muitos manuscritos sem encadeamento ou uma ideia central foram ali
colocados; apenas escritos doloridos e confusos de uma alma que vivia em
permanente inferno, pois, como se verá adiante, o que eu queria escrever, isso
não o fazia, mas o que não queria era o que eu escrevia. Junto aos editores já
não tinha mais crédito e há muito meus livros foram relegados ao esquecimento.
Não só não conseguia dirigir o que escrevia como, também, nada mais me distraia
ou me dava alegria. Quando em frente ao espelho, desespero é o que eu via em
meus olhos; não eram mais meus olhos, não era mais o meu olhar. Era algo que
passou a habitar o meu interior e que aos poucos foi deformando o meu corpo,
provocando-me rugas, muitas rugas em meu rosto e rachaduras em meus lábios e
por entre os meus dedos – e como doíam! E eu queria chorar e não conseguia; sentia o
choro subir e ser barrado na garganta, preso... A cada choro não chorado, sentia
meu corpo e principalmente minha cabeça inchar de ar, de desespero e de agonia.
Até
os amigos mais chegados se afastaram de mim; era grande a minha solidão e o meu
desespero, pois nem mesmo a minha própria voz era a mesma e as palavras que
pronunciava careciam de sentido. Quando me olhava no espelho, o que me parecia
era que a minha verdadeira imagem refletida estava embaçada, deixando a nitidez
para uma visão horrenda que eu não conseguia encarar por um mínimo de tempo que
fosse. Eu sabia que havia alguém ou alguma coisa lá, algo que eu conhecia, mas
que me negava a encarar; não queria ver a máscara que agora cobria meu rosto
real, se é que um dia o fora – até disso eu duvidei. Era triste, não queria
ver-me; desviava o olhar do espelho e encontrava comigo em pensamento. Sabia
que deveria olhar de frente a verdade da qual sempre fugira, mas tinha medo.
Um
dia, já não sei mais quando, obriguei-me a ficar em frente ao espelho; foi logo
depois de, mais uma vez, eu tentar chorar e não conseguir. A força para isso
foi encontrada no meu desespero. Então, olhei bem para a imagem nítida,
enquanto mantinha meu pescoço e minha cabeça vacilantes eretos, e vi que não
era eu; era outra pessoa que andava – eu pressenti – perdida num passado do
qual eu me esquivava de lembrar. Aos poucos, obrigando meu corpo àquela posição,
sentindo uma dor infernal, consegui perceber que havia mais alguém – agora com
certeza – dentro de mim que, inexplicavelmente, estava a me olhar; era uma
presença que eu não conseguia determinar ou localizar, mas sentia estar ali
comigo. Era algo feio, nascido do húmus da maldade que espreitava e sorria...
Ria... Gargalhava! Agora eu era dois!
Ledo
engano o meu; ao continuar olhando, consegui perceber uma legião dentro de mim.
Então, eu me indagava, onde a unidade dentro de mim, onde o indivíduo... Onde o
ser único que sempre ouvi dizer que cada pessoa é? Sentia que estava desintegrando-me
a cada momento que passava. E estes pensamentos estranhos feriam minha mente,
fazendo-a sangrar; já há muito não conseguia mais me controlar, manter a
unidade mais simples de um único pensamento que fosse meu de verdade. Ah! Que
verruma era aquela que penetrava em mim querendo arrancar meus rins e meu
coração, minhas últimas gotas de sanidade e minha já tão minguada alegria de
outrora?
Já
não suportava mais tanto sofrimento físico e mental. Minha carne estourava em
furúnculos que depois de abriam, deixando sair o prurido amarelo e nauseante;
não se fechava e não cessava de sangrar e arder e eu tentava chorar, mas as
lágrimas não saíam. Tinha o meu corpo coberto de chagas, chagas superficiais
resultantes de uma luta que estava se travando dentro de mim e da qual eu só
conseguia sentir a dor, mas nunca participar; meu corpo era apenas a arena de
um confronto muito grande, não em tamanho, mas em profundidade e de que meu
pensamento lógico não conseguia formar uma apagada ideia.
Assim,
encontrei-me neste estado, não sei se no corpo ou fora dele, não sei se
dormindo ou acordado, pois já não conseguia separar o real do irreal, assim.
Neste estado, certa vez tive uma visão: estava diante do espelho e ouvi, saindo
de dentro de mim, pelos olhos (única janela ainda aberta para o exterior em que
não havia chagas, apenas dois buracos enevoados), uma voz que ora parecia ser a
minha, para logo em seguida, misturar-se com outras. Foi quando ouvi um som que
me pareceu de trombeta e que saia do meu interior como a voz de muitas águas
caindo:
“Sei bem o que
queres, já descobri teu novo ardil. Prostrado está esse corpo sobre o leito por
causa de nossa luta. Deixaste-o com uma pergunta sem resposta e o pensamento
confundiu-se e o corpo caiu extenuado. E então tomaste as rédeas e colocou
outro pensamento em sua mente, um pensamento de que não adianta lutar nesta
vida, de que não há felicidade, de que não há solução e o que existe é nada e
confusão e desespero e um debater-se em vão – falaste certo, pois falaste do
que é próprio de ti, pois és o pai da mentira. Mas, como sempre, cometeste um
erro: esqueceste que todo ser humano é habitado por um espírito, que pode ser
de luz ou de trevas e este esta ocupado pelo de luz, embora, por causa de nosso
confronto, pareça ser de semiescuridão; e enquanto te preocupavas em trazer a
confusão a este ser, eu me fortalecia na fonte
de água viva desde o nosso último encontro e agora eis-me aqui novamente. Se
nosso confronto impede que este homem coordene o pensamento, farei com que ele
narre nosso encontro, segundo seus símbolos. E tu, espírito de Asmodeu, não
selarás as palavras desta boca e nem prenderás a mão que as escreverá. O corpo
está fraco, mas narrará, mesmo sem o saber, para que todos saibam e fiquem
conhecendo o que é o tormento de uma mente dividida. Tal escrito parecerá
estranho, extremamente estranho, beirando mesmo as raias do absurdo e da
loucura, pois esta, a loucura, é a mente dividida. É necessário saber que se
trata de uma luta travada no interior do ser, uma luta entre a Luz e as Trevas,
entre a Alegria e a Tristeza, entre o Bem e o Mal... entre Deus e o Diabo e,
por isso, nem sempre inteligível – pelo menos por enquanto. É a luta da Vida
contra a Morte. É o retrato em preto e branco do que acontece dentro de cada
ser humano, sempre que tiver que escolher entre dois valores... Deus e o Diabo
lutam por almas, destruindo corpos. Durante a transcrição deste combate, a
disputa pela posse desta alma não cessará e por isso a escrita oscilará entre a
extrema lucidez e também – infelizmente – a extrema escuridão e incompreensão.
Não sei em que estado ficará este corpo material depois de finda a batalha, mas
haverá orgulho por parte do autor que escreve, e também um sentimento de
vitória por ter o privilégio de estar parcialmente consciente, nesta vida
terrena e passageira, daquilo que é vedado conhecer à maioria dos mortais: a
luta entre o Bem e o Mal. Esta mente dirá com orgulho: 'que se realize em mim a
tão atroz e antiga disputa; sinto satisfação – ele dirá nesta sua narrativa e
nas posteriores – e agradeço ao Senhor da luz o privilégio de poder presenciar
como as coisas acontecem, verdadeiramente, dentro de cada ser humano'.”
25
de agosto
Agora
sei que estou são, pois tenho medo de ficar louco. Quando minha mente é atacada
por espíritos malignos, o espírito de luz que em mim habita vem em meu socorro.
É uma coisa horrenda ser o campo de luta onde se trava a batalha pela posse de
minha alma. O doutor Inglaterra disse que uma pessoa louca não consegue
escrever seus próprios pensamentos; se é verdade, então eu não estou louco.
Isso me faz lembrar que o meu editor não me tem mandado o pagamento pelos meus
escritos que tenho lhe enviado.
26
agosto
Percebo
que a poesia não passa pelo intelecto, ela sai direto dos rins e do coração
para o papel. Hoje recebi um e-mail contendo um poema; fiquei com medo de abrir
porque minha boca começou a sangrar e apareceu um furúnculo logo abaixo de meu
olho esquerdo; dói, mas eu não sei se quero chorar. Abri o e-mail e constatei
que eu estava certo: era uma mensagem do Diabo. Respondi imediatamente com
aquilo que me ocorreu no momento. Acho que minha missão começou hoje. Os meus
inimigos serão os da minha própria casa.
27
de agosto
Mandei
hoje a resposta para o Diabo; não coloquei endereço porque ele já sabe o que está
escrito. Tenho uma cópia do e-mail e vou transcrevê-la neste meu diário. Ei-la:
'Neste
mundo... Acreditar que a moeda só tem uma face é estar vulnerável à outra! Se
no tempo presente uma prevalece sobre a outra, é para mostrar que em toda
afirmação está contida sua negação! Neste mundo... Se andarmos na escuridão, é
porque desconhecemos a luz; quem é da noite, anda nas trevas, quem é do dia,
anda na luz. Existem os que querem mais do que a luz comum! Existem os que
buscam a luz plena e já a vislumbraram; estes trazem no peito o escudo em
espelho e contra tais as trevas não prevalecerão! Chegará o dia, e agora já é,
em que deixaremos de ver somente as aparências e em espelho! Neste dia, e agora
já é, conheceremos plenamente, como plenamente já somos conhecidos! E este dia
chegou, e este dia já é... E nos veremos face à face e o som da primeira
trombeta já soou! Está declarada a batalha da Luz contra as Trevas e contra
aquela, estas não prevalecerão! Os despojos pertencem ao Vencedor! E para a
alma que das trevas será libertada, tudo se fará luz! A morte foi vencida! O
clarim da batalha já soou. '
28
de agosto
Leio
bons livros e a cada dia que passa, à medida que vou escrevendo, caracterizando
os personagens, vou, ao mesmo tempo, percebendo com mais fineza os caracteres
das pessoas que conheço. Não posso dizer que as acho mais bonitas
interiormente; o que tenho achado é mais tristeza e poucas alegrias, sendo
estas passageiras, fruto de pensamentos fugazes que hoje valem e amanhã já não
prestam mais.
Definição
de Homem: um sonho que uma personagem de uma narrativa está sonhando.
29
de agosto
Hoje
lavei o meu quarto para ver se consigo melhorar o “clima” dentro de minha
cabeça. Eu poderia explicar agora qual a relação que uma coisa tem com a outra,
mas estou sentindo muitas dores por causados furúnculos que apareceram atrás a
orelha e debaixo do queixo; também não escrevo, porque, quando abaixo a cabeça
para escrever, o papel fica todo pingado de sangue; qualquer dia, em qualquer
hora, coloco novamente a situação diante de uma personagem e aí ela que se
preocupe com as explicações, justificativas ou seja lá com o que ela quiser. E
pronto.
30
de agosto
Tenho
andado com minha atenção desperta desde que recebi aquele e-mail desafiando-me
para lutar pela posse de minha alma. O desafio foi aceito.
Tento
não me irritar e nem deixar que este espírito do mal me distraia de meu ofício.
Devo procurar conhecer bem as maneiras de que se utiliza para melhor poder
escrevê-las em meus livros que não devem falar do particular, mas do universal.
Mas é difícil para meu intelecto apreender o que está acontecendo na esfera
espiritual.
31
agosto
Uma
coisa estranha aconteceu hoje de manhã: sai para comprar um livro sobre os
mitos da antiga Ásia e que há tempo encontrava-se esquecido e empoeirado na
prateleira de um antigo Sebo e ele havia desaparecido; indaguei do dono e ele
não se lembrava de ter aquele livro na livraria. O que me dirá esse livro? Devo
ser cauteloso em meus julgamentos. 'Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos.
'
32
agosto
Terminei
o meu noviciado no dia em que fiz oitenta e dois anos; foi o tempo que levei
ouvindo, vendo e aprendendo. Agora, sinto que estou sendo submetido a provas
para saber se sou digno de tornar-me um Iniciado. Por outro lado, sei que isto
não depende de mim; sou apenas terreno de peleja. A primeira prova já veio;
outras mais virão e eu não sei se passei na primeira. Desde ontem sinto que meu
espírito descansa; há calmaria dentro de mim, mas não sei se o inimigo se
prepara para outro ataque. Digo “inimigo” porque as provas para a iniciação
constituem-se de enfrentamentos com as forças do mundo inferior: ou se é
derrotado e aí – ai de mim! - ou se é vitorioso e inicia-se uma nova fase.
Estou em estado de alerta. Porém, sei que de nada adianta eu me preocupar,
porque na hora da peleja, será o espírito divino que em mim habita quem irá
lutar. Eu, por mim mesmo, nada posso fazer, só me resta esperar.
33
de agosto
Sinto
que o inimigo está à espreita, como fera acuada. Talvez o ataque venho hoje ou
amanhã. Se vier hoje, estou atento, porém volto a dizer para mim mesmo que quem
está escrevendo estas palavras não é o espírito divino que em mim habita; quem
está alerta – atitude vã – é minha mente, minha razão, meu intelecto – arma
inútil e, às vezes, até aliada ao mal. Quem tem ouvidos ouça o que o espírito
diz ao seu templo humano.
34
de agosto
Urinei
na cama durante a noite passada. Acho que o espírito divino, durante a luta,
abandonou o meu corpo, deixando-me à mercê do espírito infernal, que fez com
ele o que quis, para mostrar o seu poder e a sua força. Não sei o que aconteceu
durante o sono. De qualquer maneira, hoje, a minha consciência não me acusa de
nada, isto é, o demônio não me flagela. Estou bem.
35
de agosto
A
luta, que parecia haver cessado, continuou no silêncio, impedindo-me de fazer
qualquer coisa. Queria chorar, mas “ele” não deixa; tenho medo e sinto dor. O
pai da mentira usa pessoas inocentes, entrando em seus corpos e fazendo com que
elas, sem o saberem, trabalhem para ele. Seu objetivo é ganhar a alma. Agora me
ataca diferente, não é mais cara a cara; agora, tira minhas forças criativas,
enfraquecendo meu corpo e minha mente, tomando conta de minha alma. Quem virá
em meu socorro? Ó Espírito Divino, senhor dos céus e da terra, Deus todo
poderoso! Vinde em auxílio de minha alma; livrai-me dos espíritos infernais
dando-me o poder de exorcizá-los! Fortalecei minha alma levando-a para mais
perto de vossas asas protetoras e então terei forças para continuar a lutar.
Vinde em meu socorro, não me deixeis naufragar novamente! Deus meu, Deus meu, por
que me abandonaste?!”.
Estas
anotações, em forma de diário, foram encontradas dentro da gaveta de “escritos
não concluídos...”; tenho a certeza de que não as escrevi antes daquele dia
onze de junho, mas a caligrafia é minha. Além do que acabei de contar, só uma
coisa mais resta a narrar e que me devolveu a alegria de viver: o que senti um
pouco antes de abrir os olhos. Neste momento, senti meu corpo todo ser sacudido
e depois ser suspenso no meio da escuridão das trevas do que me pareceu ser o
Abismo e nem o meu próprio corpo, eu conseguia enxergar. A única certeza que eu
tinha era a de que havia um pensamento e esse pensamento era eu; sentia que era
fortemente puxado para cima e para baixo; senti o que acho ser meu próprio
corpo ser partido ao meio; no mesmo instante, uma voz vinda de dentro de mim
gritou, não para mim, mas para outro alguém que estava fora de mim: “que temos
nós contigo? Vieste destruir-nos? Bem sabemos quem sois”. E logo em seguida
ouvi uma grande voz, como a voz de muitas águas, que imperativamente falou: “cala-te
e sai dele!”. Foi então que senti meu corpo sendo convulsionado pelo que falara
primeiro e que, gritando com grande voz, foi arrancado de dentro de mim e
jogado de volta ao Abismo. Neste exato momento, abri os olhos e senti uma
grande paz e vi que estava deitado em minha própria cama e tinha as vestes
rasgadas e sujas de sangue, mas por baixo delas, o meu corpo estava são.
Levei
as mãos ao rosto e, então chorei.
EP. Gheramer
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