O AMOLADOR DE FACAS
Finalmente,
atendendo pedidos, o ‘porco’ havia tomado banho.
Um casal debruçado à
janela observa o movimento na rua. Cada um olhando para lados opostos. Ele, um
idoso na faixa dos sessenta e ela, dez anos mais jovem. O movimento na rua era
o de sempre. Em pouco menos de uma semana, um acontecimento viria afetar suas
vidas, embora de maneira muito diferentes. Para ele, seria o princípio da
realização de seu sonho; para ela, não. Era o sonho dele, ela apenas pegara uma
carona desde que se conheceram há nove anos. Nos últimos tempos, muita coisa
mudou na vida dela.
Por exemplo, tomara
consciência de que os sonhos dela não eram os sonhos dele. Mas, qual era seu
sonho? – Um dia ela se perguntou e respondeu que não eram os dele. Ouviu-se ao
longe o som do Amolador de facas. Aquele zumbido da lâmina de aço na roda de
ferro do carrinho que ele empurrava, já fazia parte do bairro assim como o
toque do sino da igreja na praça às dezoito horas.
O Amolador,
empurrando seu carrinho, passava todos os dias pela rua e as pessoas saiam de
suas casas, trazendo facas e tesouras para serem amoladas. As donas de casa
costuram muito e para algumas, ser costureira era uma profissão.
Mas, hoje já não
mais era assim. Começou a mudar aos poucos. O Amolador de facas, que passava
todos os dias começou a passar dia sim e dia não. Depois, só passava de vez em
quando, talvez uma vez por semana. E não demorou muito para ninguém mais ouvir o zunido do Amolador. Sua
passagem foi escasseando lentamente, até o dia em que ele parou de passar.
Ninguém notou isso. Só o Amolador.
Da janela, olhando
para um dos lados, Ernesto, por menos que quisesse, não deixava de pensar no
que poderia acontecer naquela semana que começava. A realização de seu sonho
estava em jogo; só dependia da resposta que viria naquela semana. Àquela
altura, o que o inquietava era a resposta. Um ‘sim’ ou ‘não’ decidiria o rumo
de sua vida. Considerava a hipótese de um não, mas, neste caso, havia o plano
B. Sim, havia outro plano, mas, neste caso, teria que esperar por mais tempo e
ele já estava com sessenta e sete anos. Daria tempo? Ele se perguntava. Viveria
até lá? E se vivesse, ainda estaria em condições físicas – e até mentais, por
que não? – de realizar e aproveitar? Neste momento, seus pensamentos foram
interrompidos por uma gritaria entre duas vizinhas que discutiam por alguma
coisa.
Dona Amélia
acompanhara desde o início, a desavença entre as duas vizinhas. O que motivara
tudo foi que fulana colocara o saco de lixo na calçada de sicrana que achou um
abuso e chutou o lixo para a calçada de fulana e daí em diante aconteceu o que
acontece sempre, quando as pessoas não têm nada melhor para fazer. Amélia só
percebeu tudo porque era para aquele lado da rua que estava olhando.
Dia quente aquele.
Ambos queriam sair dali e mudarem para um lugar tranquilo, afastado dessas
‘coisinhas’.
Mas Dona Amélia iria
à carona dos sonhos de Ernesto. Não eram exatamente os seus sonhos, mas era
parecido e, enquanto ela não descobrisse quais os seus, viveria os dele ou
talvez apenas com ele. Só o tempo diria.
E só com o tempo
Amélia descobriria os próprios sonhos, pois, se não fosse por um detalhe –
pensava ela – seus sonhos poderiam ser iguais.
Ninguém sabia o nome
do Amolador de facas e tesouras e nem se interessou em saber.
Lá de dentro da casa
veio o choro do cachorro que eles tinham. Já velho, morria aos poucos deitado
sobre panos acolchoados. Com os olhos já saltando das órbitas e sem forças
param se locomover, era mantido vivo ali. Remédio para dor, comida líquida que
ingerida através de uma seringa. Bolinha, que fizera xixi no pé de Amélia
quando ela chegou para morar com Ernesto, nove anos atrás, ia morrendo aos
poucos. Enquanto assim fosse, Amélia cuidaria dele; Bolinha precisava dela. Ele
não podia morrer. Pelo menos ainda não, era preciso que ele precisasse dela.
Ninguém mais mandava
amolar facas ou tesouras. Agora, comprava-se um amolador elétrico e de fácil
uso, que ficava a um canto da cozinha e era facilmente usado. Mas, até mesmo as
facas e tesouras eram descartáveis, de tão baratas que passaram a ser e, além
disso, os modelos mudavam a toda hora e a TV não deixava de anunciar isso.
Ninguém mais precisava do Amolador que antes passava todos os dias, empurrando
seu carrinho e parava de vez em quando, girava sua roda de ferro e encostava
uma lâmina de aço e desse encontro saíam faíscas e um zunido longo – era o
Amolador que estava chegando.
Ernesto precisava
realizar seu sonho para poder continuar vivendo. Ele espera um ‘sim’; ele e
outros precisavam disso. Mas havia o plano B, mas ele não queria esperar...
Poderia não dar tempo.
Ernesto não estava
inerte, ficara fazendo algo muito importante: estivera esperando um ‘sim’
durante toda a sua vida para continuar vivendo. Sua espera já durava mais de
cinquenta anos. Todos sabiam. Somente
ele não sabia.
EP. Gheramer
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