02 - Casa de Refugio
Para Benjamim, de certo modo, aquele lugar era uma
Cidade de Refúgio, embora ele não fosse um homicida e nem estivesse sendo
caçado por parentes de um morto. Seu crime era outro e quem o caçava era ele
mesmo. Seu pensamento, no que dizia respeito aos costumes sociais, destoava da
moral coletiva presente na sociedade desumanizada da qual fazia parte.
Algo acontecera com ele naquele dia em que acordou presa
de um pensamento que era, ao mesmo tempo, perturbador e libertador. Perturbador
enquanto seu modo de perceber as regras e costumes do mundo em que vivia não
permitia que continuasse ali, da maneira que até então vinha se comportando,
nos seus relacionamentos com as pessoas com as quais convivia e que eram seus
amigos, parentes... Enfim com todos ao seu redor. Ele não sabia ao certo quando
aquilo aconteceu, mas, não podia negar que acontecera. E, para melhor poder
entender a situação em que se encontrava, necessitava de um lugar onde pudesse sentir-se
livre de tudo aquilo que, necessariamente, advinham do convívio humano que a
cidade cobrava. Decidira deixar de dar voltas em torno de um mesmo ponto e
encurralar em um canto, de uma vez por todas, aquela questão e só descansar
depois de encontrar a resposta.
Depois que se instalou na casa já preparada para ele, encontrava-se,
finalmente, sozinho consigo mesmo.
Até aquele dia sua vida fora vivida no estado de
profundo desânimo de uma pessoa que se sente incapaz de qualquer ação. Benjamim
já vira o organismo microscópico, a molécula... Mas não vira Deus; viu o
ininteligível, o inexplicável e até o inatingível... Mas não vira Deus. Já
ouvira de muitas bocas palavras a esse respeito, mas não fora por causa delas
que a consciência do que se passava em sua mente, de maneira inexplicável, era cada
vez era maior, como maior era a certeza de que estava certo tal como estava
certo de sua própria existência. Mas, então, por que não era aplacada a sua
sede? Nascido numa sociedade e numa família cristãs, não podia furtar-se a
pensar de maneira igualmente cristã. O ocidente era cristão. E, paradoxalmente,
ele dava graças por ter aquela absurda fé no que não via. Agora teria a
oportunidade de encurralar aquele absurdo num canto e sugar dele tudo o que
nele houvesse; se se mostrasse uma vil, extrair dele toda sua vileza, mas, se
se mostrasse verdadeiro, extrair dele toda a sua verdade e realeza.
Abriu a mala menor e dela retirou o livro que vinha
escrevendo. Apertando-a entre as mãos, fez o juramente de somente deixar aquele
lugar, vivo ou morto, somente depois de encontrar a Verdade que lhe disseram
que estava à espera de quem se dispusesse a procurá-la.
Já era noite quando a luz da casa acendeu. O tempo
passava. Ora sobre a cama, ora sobre a mesa, Benjamim trazia consigo aquele
livro inacabado, desde aquele primeiro dia em que o abriu e iniciou sua
escrita; a caçada havia começara. Desde então, fora ferido, repreendido, mas
não havia como rejeitar tudo o que nele já escrevera. Continuaria a escrever
enquanto os perversos praticavam a maldade. Então, eles seriam precipitados do
penhasco, mas não sem antes lerem suas palavras, que lhes eram desagradáveis;
ainda que fossem espalhados seus ossos à boca da sepultura, quando se lavra e
sulca a terra; cairiam os maus nas suas próprias redes, enquanto ele, nesse
meio tempo, se salvaria incólume.
Na nova morada, da primeira vez que se sentou para
continuar a escrever, deu-se conta de que não tinha nada a dizer; forçou um
mergulho no profundo de sua mente, mas, para seu desalento se sentiu incapaz de
qualquer ação, pois, nada encontrou - ela estava vazia.
O que ele não sabia é que pensamentos desajustados aguardavam,
do outro lado dos altos muros das Cidades de Refúgio, por todo aquele que se negasse
a conviver na humanidade desumanizada; as muralhas os bloqueavam.
Continua...
EP.
Gheramer
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